Joaquim Serra
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,
05/11/1888.
Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra, vi que
naquele féretro ia também uma parte da minha juventude. Logo de manhã
relembrei-a toda. Enquanto a vida chamava ao combate diurno todas as suas
legiões infinitas, tão alegre e indiferente, como se não acabasse de
perder na véspera um dos mais robustos legionários, recolhi-me às memórias de
outro tempo, fui reler algumas cartas do meu amado amigo.
Cartas íntimas e familiares, mais letras que política. As
primeiras, embora velhas, eram ainda moças, daquela mocidade que ele sabia
comunicar às coisas que tratava. Relê-las era conversar com o morto, cuja alma
ali estava derramada no papel, tão viçosa como no primeiro dia. A cintilação do
espírito era a mesma; a frase brotava e corria pela folha abaixo, como a água
de um córrego, rumorosa e fresca.
Os dedos que tinham lavrado aquelas folhas de outro tempo,
quando os vi depois cruzados sobre o cadáver, lívidos e hirtos, não pude deixar
de os contemplar longamente, recordando as páginas públicas que trabalharam, e
que ele soltou ao vento, ora com o desperdício de um engenho fértil, ora com a
tenacidade de apóstolo. Versos sobre versos, prosa e mais prosa, artigos de
toda casta, políticos, literários, o epigrama fino, o epíteto certo ou jovial,
e, durante os últimos anos, a luta pela abolição, tudo caiu daqueles dedos infatigáveis,
prestadios, tão cheios de força como de desinteresse.
A morte trouxe ao espírito de todos o contraste singular
entre os méritos de Joaquim Serra e os seus destinos políticos. Se a vida
política é, como a demais vida universal, uma luta em que a vitória há de caber
ao mais aparelhado, aí deve estar a explicação do fenômeno. Podemos concluir
então, que não bastam o talento e a dedicação, se não é que o próprio talento
pode faltar, às vezes, sem dano algum para a carreira do homem. A posse de outras
qualidades pode ser também negativa para os efeitos do combate. Serra possuía a
virtude do sacrifício pessoal, e muito cedo a aprendeu e cumpriu, segundo o que
ele próprio mandou me dizer um dia da Paraíba do Norte, em 10 de março de 1867:
Já te escrevi algumas linhas acerca da minha adiada viagem
Não me referiu, nem então, nem depois, outras
particularidades, porque também possuía o dom de esquecer, — negativo e
impróprio da vida política.
Era modesto até à reclusão absoluta. Suas idéias saíam
todas endossadas por pseudônimos. Eram como moedas de ouro, sem efígie, com o
próprio e único valor do metal. Daí o fenômeno observado ainda este ano. Quando
chegou o dia da vitória abolicionista, todos os seus valentes companheiros de
batalha citaram gloriosamente o nome de Joaquim Serra entre os discípulos da
primeira hora, entre os mais estrênuos, fortes e devotados; mas a multidão
não o repetiu não o conhecia. Ela, que nunca desaprendeu de aclamar e agradecer
os benefícios, não sabia nada do homem que, no momento em que a nação inteira
celebrava o grande ato, recolhia-se satisfeito ao seio da família. Tendo
ajudado a soletrar a liberdade, Joaquim Serra ia continuar a ler o amor aos que
lhe ensinavam todos os dias a consolação.
Mas eu vou além. Creio que Joaquim Serra era principalmente
um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar também o
arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social. Onde outros
podiam ver artigos de programa, intuitos partidários, revolução econômica,
Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e, porque era bom e punha
em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública, cheio
daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de todos
os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.
Não importa, pois, que os destinos políticos de Joaquim
Serra hajam desmentido dos seus méritos pessoais. A história destes últimos
anos lhe dará um couto luminoso. Outrossim, recolherá mais de uma amostra
daquele estilo tão dele, feito de simplicidade, e sagacidade, correntio,
franco, fácil, jovial, sem afetação nem reticências. Não era o humour de Swift, que não sorri, sequer.
Ao contrário, o nosso querido morto ria largamente, ria como Voltaire, com a
mesma graça transparente e fina, e sem o fel de umas frases nem a vingança
cruel de outras, que compõem a ironia do velho filósofo.